quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Encontro

O dia amanhece, e como de costume, ao sair da cama Carlos abre a janela e dá bom dia ao dia. Um gesto simples, que quase ninguém faz atualmente, mas Carlos o faz todos os dias sem hesitar. Na cabeça pensamentos comuns de um rapaz comum, é domingo, dia de descanso, de jogar futebol, chamar os amigos e fazer um churrasco com pagode. Decidiu reunir a turma, foi então que se viu só em pleno domingo. Várias as desculpas, trabalho, filhos, esposa, cansaço, foram as mais ouvidas. Hoje, as pessoas estão cada vez mais ocupadas, isoladas, violentas, falsas, mentirosas.
Será? Será que o destino de todos é a solidão, a indiferença, a desconfiança? Será que os sentimentos bons estão realmente sendo esquecidos pelos homens?
Carlos passou o domingo pensando nas relações humanas e percebeu que seu singelo gesto matinal era uma bobagem, se sentiu estranho por estar feliz, em tempos modernos a felicidade não existe, ou melhor, felicidade é dinheiro no bolso. Como ele poderia ser feliz sendo um típico cidadão brasileiro, pobre, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura . . . não ele realmente não podia se sentir feliz. O dia passou, a noite se anunciou e o sono chegou, é hora de dormir pois o dia seguinte é dia de trabalhar.
É segunda-feira, nem bem nasceu o dia e pela primeira vez na vida aquele homem levantou e foi direto para o banheiro, obrigações diurnas normais banho tomado, dentes escovados, roupa passada, tudo feito é hora de ir ao ponto de ônibus. Rotina das pessoas que vivem à margens da sociedade é assim, acordar cedo e sair de casa antes do sol aparecer, pegar uma condução cara e precária – o chamado GOL, “Grande Ônibus Lotado” – e dividir espaço com outros tantos na mesma situação, todos com cara fechada, semblantes carrancudos sem nem ao menos olhar para os lados. Carlos percebeu que estava certo, que havia tomado a decisão correta.
Durante o expediente não houve uma só pessoa que não tivesse notado a mudança, todos comentavam como Carlos estava diferente, fechado num canto, realizando suas funções sem dar um único sorriso, sem levantar a cabeça, apenas dando respostas curtas e secas. A única resposta que os colegas de trabalho queriam saber era onde estava aquele rapaz alegre, que sempre tinha um lindo sorriso sincero no rosto, palavras de carinho e amparo para quem precisasse . . . onde estava esse rapaz? O que acontecera à ele? Ninguém sabia, ninguém sequer imaginava o que se passava naquela cabeça.
Carlos estava tão chateado com o rumo que as coisas haviam tomado que nem se dera conta de que era o assunto do dia. Semanas inteiras se passaram, um dia após o outro e cada um da mesma forma, tristes, solitários e carrancudos. Se alguém se atrevesse a perguntar o que estava acontecendo levava logo uma resposta bastante agressiva, seus colegas, amigos e companheiros estavam preocupados, aflitos e sem saber o que fazer para ajudar, pois Carlos não se abria com ninguém, há tempos não comparecia ao futebol de todos os domingos, vivia sempre sozinho e nas raras oportunidades em que se reunia com as pessoas ou ficava poucos minutos ou se ficava, era o tempo todo reclamando e esbravejando aos quatro ventos o quanto era difícil a vida, que estava cansado de tudo . . . . . . .
Mais uma semana se passou, e com ela chegou outro final de semana, mais um domingo, mais solidão. Foi então que veio a vontade, ou melhor, a necessidade de estar em algum lugar diferente, de respirar um pouco, fazer uma simples caminhada. Havia um parque perto de sua casa, Carlos então tomou um banho, se vestiu e foi caminhar, passou a tarde inteira no parque sem olhar para nenhuma pessoa, não trocou nem uma palavra com ninguém como sempre. No final da tarde, já cansado, resolveu tomar um refresco e mal sabia que esta atitude iria mudaria radicalmente a sua vida.
Domingo de sol, um parque, um banco, um refresco . . . e Carlos, um rapaz comum que nem percebeu o que estava acontecendo. Ao seu lado sentou-se um garotinho, e sem mais nem menos disse “Boa tarde moço” com um sorriso lindo e puro que só as crianças tem. O garoto começou a contar para o “moço” o que havia feito ou deixado de fazer naquele dia tão bonito, falou tanto e daquela forma que só as crianças conseguem falar que nem se deu conta de que não estavam lhe dando atenção, de repente o menino percebeu que estava sozinho, olhou ao seu redor e avistou o homem se afastando lá ao longe. Levantou-se e correu como nunca havia corrido antes até conseguir alcançar o tal, quando chegou disse:
- Moço . . . ô moço . . . . . .
- O que foi garoto? O que você quer comigo?
- Nada, não foi nada não, eu só queria lhe dizer boa tarde!
- Pronto, já não disse?
- Sim já disse mas . . . credo, porque o senhor é tão bravo? Deve ter acontecido alguma coisa muito ruim para você ter ficado assim tão . . . rude, tão grosso, tão velho rabugento apesar de novo.
- Que isso pequeno jovem, como que você diz essas coisa para alguém que você nem conhece e que é mais velho que você, seus pais não te deram educação não?!
- Claro que deram, e deram outras coisas também, mas com certeza o senhor não está interessado em ouvir afinal deve ser alguém importante e bastante ocupado e . . . . .
- Sim sou, mas nem tanto. Hoje é um belo domingo de sol e estou com bastante tempo . . . vamos voltar para onde estávamos para batermos um papo.
Nesse momento Carlos reparou um pouco mais naquele pequeno garoto que estava a sua frente e pode constatar que se tratava de uma criança nitidamente simples, pelas roupas surradas e sujas, o olhar fundo e penetrante típico daqueles que sofrem, uma criança brasileira e imediatamente mudou de idéia
- Peraí, que tal irmos até uma lanchonete, já passa da hora do jantar e você deve estar com fome !?!
- Olha moço eu não vou mentir para o senhor, estou com fome sim pois não como nada desde ontem de manhã.
- Então vamos à lanchonete do parque .......
Os dois se levantaram e caminharam tranqüilamente ao chegar, o garoto pediu para que eles se sentassem em uma mesa do lado de fora onde era possível ver os pássaros e toda a beleza do parque. Fizeram seus pedidos normalmente e o garoto se sentiu maravilhado com o que lhe estava acontecendo, comeu um lanche enorme e bastante gostoso. Carlos observava a forma com que seu “amiguinho” saciava sua fome, o brilho nos seus olhos e resolveu fazer uma pequena surpresa. Usou uma vontade de ir ao banheiro como desculpa e combinou com o garçom uma bela e gigantesca taça de sorvete com todas as coberturas possíveis e imagináveis.
Quando o “sorvetão” chegou o garoto quase explodiu de alegria, fazia muito, muito tempo que ele não saboreava um bom sorvete . . . devorou em poucos minutos aquele presente. Terminada a refeição os dois recém conhecidos ficaram um bom tempo apenas se olhando e vez em quando perdiam os olhares pelo horizonte observando a exuberância da natureza naquele final de tarde de um Domingo ensolarado.
O tempo foi passando e quando notaram estavam em meio a uma descontraída conversa, não sabiam ao certo como havia começado, mas isso já não tinha nenhuma importância, somente a troca de informações que estava começando a acontecer ali no banco da lanchonete no meio de um parque num domingo qualquer para qualquer um e que seria único e especial para Carlos e Joãozinho (João, esse era o nome daquele garotinho).
De forma tocante, sincera, apressada, confundindo todos os sentimentos ao falar Joãozinho foi narrando a triste história da sua curta existência. Contou como havia perdido o pai numa briga de bar quando tinha quatro anos de idade, de como a vida era difícil na favela em que morava com a mãe que começara a beber e a se drogar após a morte do pai, Disse a Carlos que passava dias na rua fazendo todo tipo de serviço para tentar levar algum tipo de alimento para sua mãe e como raramente conseguia, levava dias para voltar pra casa . . . . até o dia que voltou e não encontrou sua mãe, encontrou uma vizinha que lhe deu a notícia da morte de sua mãe. Ao ouvir a notícia o pequeno menino atravessou a porta e nunca mais voltou e fez das ruas o seu novo lar.
Carlos ouvia tudo atentamente, a história era triste mas havia algo que o intrigava. Aquele garotinho a sua frente narrava sua história trágica de forma calma e serena e ainda dizia que por várias vezes ajudava quem quer que estivesse precisando de ajuda e toda vez que falava nisso abria um franco sorriso. Nesse momento ele revelou que por isso havia iniciado uma aproximação:
- Tio Carlos, eu vi que o senhor caminhava pelo parque com a cara fechada,
uma tristeza no rosto e achei que talvez pudesse fazer algo . . .
- É verdade meu pequeno amigo, ocorreram coisas na minha vida que me tiraram a alegria habitual mergulhando meu ser numa tristeza e egoísta . . . Mas isso não importa, me conte mais sobre você, qual seus sonhos, vontades . . .
Joãozinho começou a falar que gostava muito de desenhar casas, prédios, contou que adorava desenhar cadeiras e armários coloridos e que um grande sonho era aprender a ler, mas confessou que sabia que esse era um sonho distante pois mal conseguia comer quanto mais comprar roupas, cadernos, lápis e todas as coisas que precisaria se alguma escola o aceitasse.
Carlos ficou comovido e perguntou se aquele garoto não queria ir morar com ele. A resposta veio em um abraço emocionado, e lá foram os dois para casa.
O tempo foi passando e aquele homem que havia perdido as esperanças hoje conseguia sorrir, Joãozinho começou a freqüentar uma escola, aprendeu a ler e com o passar dos anos descobriu que tinha vocação para arquitetura profissão que exerceu após longos anos de estudo sempre com a ajuda de Carlos a quem carinhosamente chamava de pai.
Carlos . . . bem, Carlos voltou a ser o mesmo homem demais, ou melhor, nunca mais foi o mesmo. Descobriu que seu erro não era acordar e dar bom dia ao dia, seu erro era dar bom dia com todo entusiasmo apenas para os dia, descobriu que havia pessoas ao seu redor a todo momento, amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos e que alguns deles tinham problemas bem maiores que o dele . . . passou a dar bom dia para todos que via na rua, parava pra conversar com alguém se percebia um rosto triste ou amargurado . . .
Naquele domingo de sol Carlos descobriu a vida na figura daquele garotinho de olhar intenso, teve um encontro, descobriu como ser . . . humano, teve o encontro com o Amor.

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